quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A bicicleta

A bicicleta

26.01.2012

(entre David e Bocas del Toro)

A bicleta na qual eu aprendi a andar era azul. Era do meu irmão. Os mais novos normalmente herdam as coisas dos mais velhos. Comigo passava-se o mesmo. De entre todas as coisas que herdei tanto do eu irmão como da minha prima (ambos mais velhos do que eu) lembro-me do que mais e menos gostei. O que mais gostei foi a bicicleta azul por ser a primeira e o que menos gostei foi o casaco de Inverno rosa-choc que jurei nunca vestir. A bicicleta tem na infância a mesma importância que a carta de condução na adolescência. Significa liberdade. A liberdade com que ansiamos desde que por volta dos cinco anos começamos a perceber as coisas e restrições são impostas: ‘não corras, olha que cais!’; ‘não faças isso, já te avisei, em casa conversamos!’; ‘não comes a salada não vais ao parque aquático depois de almoço’; ‘não deixes cair olhas que estragas’. De repente, a nossa infância vira exclamação atrás de outra, mas todas começadas pela mesma palavra: ‘não’!
Imaginem agora quando aprendemos a andar de bicicleta e quando podemos ir à rua sozinhos andar. Até podemos voltar a casa com os calções rasgados, os pés e mãos cheios de óleo, os joelhos em ferida e a t-shirt branca agora castanha ‘eu bem te disse para não levares essa t-shirt branca que se suja!’, mas ao menos no tempo que estivemos na rua ninguém nos exclamou nada. Esse tempo na rua não era mais do que uma afirmação sem exclamções. Existiam apenas vírgulas aqui e ali em forma de ‘oitos’ que orgulhosamente tinhamos aprendido a fazer no dia anterior (a mim foi o meu avô que me ensinou a fazer ‘oitos’) ou interrogações ‘será que consigo saltar aquela rampa sem cair do outro lado?’.
A minha bicicleta não era BMX (essa veio mais tarde), era azul e antiga. Estava guarda na arrecadação até que eu aprendesse a andar. Por esta altura já o meu irmão tinha outra, porque a azul era muito pequena. Aliás, ainda hoje me interrogo se onde aprendi a andar foi na bicicleta azul ou na bicicleta preta do meu avô (uma bicicleta que me parecia gigante na altura) na casa dos meus avós, numa aldeia chamada Bóco, ao pé de Aveiro.
Lembro-me de nas traseiras do meu prédio todos os meninos do bairro irem andar de bicicleta (quando ainda não me aventurava, para quem conhece os Olivais, até ao Vale do Silêncio ou até ao antigo Pingo Doce) e de eu estar sempre atrás deles por ser a mais nova. Os meus vizinhos tinham uma bicleta que eu adorava porque era uma bicicleta como mais ninguém tinha: vermelha e com o assento para duas pessoas! Um só assento onde cabiam duas pessoas. Era o mais parecido com uma moto que eu alguma vez já tinha visto de perto. Ansiava por experimentar essa bicileta, mas era a mais nova e, principalmente, nessas idades ninguém escuta os mais novos. Nunca a experimentei e progressivamente perdi o interesse. Concentrei-me nos meus ‘oitos’ na difícil calçada das traseiras do prédio, a famosa calçada de Lisboa, imprópria para bicicletas pequenas, patins e saltos alto. Quando se tem sete anos e os outros onze anos, já nos podemos dar por sortudos o facto de termos a nossa própria bicicleta e de podermos andar na rua.
Nunca fui de bicicleta para a escola porque havia demasiadas estradas com carros e não tinha autorização para atravessar o Vale do Silêncio, o tal e parque gigante que divide os Olivais Sul dos Olivais Norte. Mas mal chegava a casa da escola, esperava ansiosamente pelo elevador que descesse do sexto andar até ao R/C para me levar a casa, o longínquo nono andar. Pegava na ‘bina’, metia-a no elevador e lá ía eu. Aos fins-de-semana ía mais à tarde, porque ao Sábado e Domingos havia sempre outros programas, mas nas férias da escola, esperava pacientemente (ou não tanto) pelas dez horas, hora às quais me deixavam descer e ir andar, e saía porta fora. Desde que voltasse a horas para almoçar não havia problema. Não tinha relógio, mas sabia quando tempo me demorava até determinado sítio e quando tempo precisava para estar em casa à uma. As horas das refeições em Portugal são sagradas.
No Algarve não sentia a necessidade de ter uma bicicleta. Caminhava para todo o lado, havia espaço e era-nos dado um grau de liberdade que em Lisboa era bastante menor. Não penso por Lisboa ser perigoso, simplesmente porque havia mais ruas com carros e o maior medo dos nossos pais ser o de nós não olharmos cinco vezes para a esquerda e cinco vezes para a direita antes de atravessarmos a estrada. Confesso que ainda hoje sou terrível a atravessar a estrada. Recentemente quando estive no Cairo, valeu-me essa atitude destemida, senão demorariamos meia-hora a atravessar a estrada. Não há semáforos ou se os há ninguém os respeita, não há vias definidas para os carros, talvez existam passadeiras, mas há que atravessar e já está. O segredo é colocarmo-nos à esquerda de alguém se os carros vierem da direita ou vice-versa.
Voltando à minha bicileta azul... marcou uma época. Não era o último modelo, não era a bicicleta da moda, nem sequer era da minha cor preferida, mas era minha. Ía muitas vezes à garagem da Renault ao final da minha rua pedir para encherem os pneus ou para consertarem um furo. Também ía muitas vezes a essa garagem pedir para encherem a bola de futebol com que jogávamos tarde após tarde após tarde. Mas esse é outro capítulo.
Não sei se por ter crescido e, de repente, os meus joelhos quase baterem no chão de cada vez que dava uma pedalada, mas era tempo para outra bicileta. A moda eram as BMX, muito antes da moda das bicicletas de montanha com mudanças. A minha era branca com as esponjas que protejem o guia e o ‘corpo’ da bicleta roxo e verde fluorescente. Não me recordo se herdei essa bicicleta ou se me foi oferecida. Esta bicicleta dava outro estatuto. Ainda para mais era branca com pormenores berrantes, gritava ‘olhem para mim na minha BMX’. A pressão para saltar rampas e andar só numa roda era maior, mas a pressão de não cair à frente dos meus amigos crescia em igual proporção. Essa altura foi provavelmente das primeiras vezes em que, sem um adulto me gritar ‘olha que cais’, pensei para mim mesma ‘saltou ou não salto? É que se salto e caio ainda me magoo’. Já está! Os adultos tinham sido bem sucedidos em incutir em mim o peso das consequências das minhas acções. O trabalho deles está feito! Admito que sim, pensei nas consequências, pensei na probabilidade de cair e enquanto me iriam doer os joelhos se caisse. Mas saltava à mesma. Tenho as nódoas negras nas canelas e nos joelhos para o provar. As maiores mazelas vieram das quedas de bicicleta e das aulas de Educação Física, quando a professora perguntava quem queria ir primeiro ‘Eu! Eu!’ e caía redonda fosse a saltar ao eixo no cavalinho ou a dar uma cambalhota atrás.
Hoje já não ando tanto de bicicleta como antes, mas sempre que vejo uma sinto-me como se tivesse oito anos outra vez. Livre, o mais livre que uma criança de oito anos se pode sentir
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J.F.
24.01.2012

Há pessoas de quem é mais fácil gostar. Seja porque têm muito a ver connosco e, egocentricamente, gostamos disso ou seja porque são o nosso oposto e, como tal, transmitem-nos uma calma para a qual não descobrimos ainda o segredo. Há pessoas de quem é muito fácil gostar menos. Mas essas não importam agora.
Há uma pessoa de quem eu gosto muito. Tem traços de personalidade bastante definidos. Tem ‘personalidade’. É pequenina, mas as aparências iludem. Aliás pode-se dizer que é ‘palmo e meio de gente’. No outro dia ensinei-lhe o que era uma meia-dose, porque com certeza no decorrer da sua vida lhe vão chamar, como o fizerem (e fazem) a mim. Há que saber o significado das coisas para saber como reagir. Porque para pessoa como ela e, como eu, impulsivas há que medir bem a consequência dessa impulsividade. Meia-dose normalmente é digo de um modo carinhoso, portanto reagir com um sorriso será apropriado. A mim, alguém de quem gosto muito, chama-me matraquilha. Sou pequena e gosto de futebol, parece-me bastante apropriado.
A tal pessoa pequena sobre quem escrevo este texto espero que escute, em parte, aquilo que tanta gente lhe irá dizer, aconselhar, avisar, porque a sua natureza será a de ignorar, mas nem tudo está errado. Irá saber defender-se, como aliás já o sabe (eu própria o vi com os meus olhos), mas espero que saiba a diferença entre defender-se e atacar. Na tão apreciada gíria futebolística dizem que ‘a melhor defesa é o ataque’, mas nem todos nos querem atacar, há que escutar. Lê o que eu te digo, há que escutar.
Tu, como eu, fartas-te das coisas facilmente, perdes a paciência e queres tudo já. Tu é que sabes. Garanto-te de que há coisas pelas quais vale a pena esperar. Há pessoas pelas quais vale a pena esperar. E, espero que saibas, quando nada mais há a fazer ou quando devas continuar de sorriso cheio de esperança acreditando que sim, que ainda faz sentido essa espera. Garanto-te que não será fácil saber a diferença, senão sentindo-a com um coração aberto.
O meu olhar registra os teus passitos apressados, as tuas voltas de bicicleta de dois minutos quando decides que já não te apetece mais, a tua voz a mudar para mais doce porque te apetece uma goma, ‘só uma, vá lá só uma’ dizes tu (as duas sabemos que uma são duas e duas são três). Registra também o teu cruzar de braços indignado por qualquer coisa que para nós parece irrelevante, mas que para ti merece toda a nossa atenção. Todos nós já nos sentimos ignorados, mas quando crescemos o cruzar de braços ignorado vira um sorriso disfarçado. O meu conselho é que abuses desse cruzar de braços, porque quando tiveres mais meio metro ninguém te perdoará essa indignação. Abraça a indignação, o quereres mais, o impulso, mas nunca o faças com falta de educação ou de respeito. Ninguém perdoa uma falta de educação.
Quando te digo ‘até logo’, sinto que nunca acreditas em mim. Sinto que para ti ‘até logo’ significa muito tempo. Porque para ti o tempo não tem ainda significado. Não sabes o dia em que nasceste. Até podes saber, mas não tens noção se falta muito ou pouco tempo. Não sabes quando é Segunda-feira ou Sábado. Sabes, penso que por associações que hoje poderá ser Sábado, porque não foste à escola. Sabes que hoje é Terça-feira, porque tens o fato-de-treino vestido e é dia de ginástica. Por isso achaste tão estranho quando eu te disse que ía para o Algarve em Dezembro, ‘então mas Algarve não é só no Verão? Agora faz frio!’. Como se eu ir para o Algarve fosse a coisa mais ridícula do mundo. Desculpa se te confundi, mas com o tempo vais ver que muitas vezes me confundo a mim mesma também e, quem sabe, um dia serás tu a ajudar-me em decifrar as coisas.
Muitas vezes tento não me perder no modo como me convences de que a tua mãe disse que não fazia mal comer mais uma goma, apesar de faltarem apenas cinco minutos para o jantar. Jantar que vais dizer que adoras, mas que passados dois minutos afinal não te apetece. Não te preocupes, um dia irás comer mais do que eu. Há sempre um exemplo na família de quem não comia nada quando era pequena e olha hoje o que come. Na nossa família, todos sabemos quem serve de exemplo e, hoje em dia, quem lhe tira um esparregado tira-lhe tudo. Isso é suposto sossegar os teus pais, mas sinceramente não sei se resulta.
Confesso meia envergonhada que tento deliberadamente influenciar os teus gostos futebolísticos e musicais. Nasceste em Lisboa e, parece-me certo, que saibas já o que é uma Marcha. Não sei se tento apenas que gostes do que eu gosto para ter uma companheira de partidas, mas que escutes também outras músicas que não ‘A, B, C; 1, 2, 3’. Não sei se também por eu já saber o abecedário e não precisar de o reaprender cinquenta vezes por dia ou se realmente gostava que gostasses de, pelo menos, alguma música que eu escuto.
Escuta a música que quiseres, mas as palavras escuta as de quem te quer bem. E, depois, faz aquilo que tu quiseres. De coração aberto.
Quando aprenderes a ler, procura no dicionário a palavra ‘medo’ e lê a sua definição. Para que não te esqueças. E, depois, procura a palavra ‘coragem’, para que nunca lhe soltes a mão.
Nasceste no mês do sol. No mês das férias porque todos anseiam. Por isso, faz sempre da tua presença, da tua vida uma metáfora da alegria que esse mês representa para tanta gente. Uma metáfora não, uma hipérbole. Exagera na alegria, exagera no riso, exagera na felicidade.
Tu nunca irás saber o que é uma televisão a preto-e-branco e uma televisão com dois canais apenas parecer-te-á uma mentira. Vais dizer que exagero quando escrevo que em dez segundos te fartas de um desenho animado e queres outro. Mas agora é fácil, basta mudares de canal e tu já dominas o controlo remoto.
Às vezes dou por ti a rires-te muito de uma coisa só porque eu também me rio. Confesso que prolongo o riso para ver até quando aguentas esse terno e carinhoso ritual de imitação. Sei que essa imitação é um elogio e rires-te comigo significa que gostas muito de mim. Também eu de ti.
Muitas vezes discutem comigo por eu fazer coisas que não é suposto e, consequentemente, tu me copiares. Às vezes faço de propósito, outras vezes esqueço-me de que tens apenas meio palmo e eu já palmo e meio.
Eu olho à volta e às vezes não sei o que vejo. Olho à volta e ouço e tento ouvir, tento escutar. Nunca paro de tentar. Busco. E muitas vezes acho.
Tu terás também com certeza a capacidade de escutar. Eu sei que sim. Porque te vejo terna e calma enrolada no colo da tua avó. Ou porque te vejo sussurando que não podes mexer nas caixinhas porque a avó não deixa. Ou dizendo ao teu mano que os tachos são do avô. Isso é a prova de que tu escutas.
Os teus anos e dias agora estão baralhados, organizados apenas pela rotina da escola, das actividades extra-curriculares e das Sextas-feiras onde jantas sempre fora de casa.
Eu estou aqui a escrever também a tentar organizar os meus dias através desta carta que te escrevo.
Muitas vezes te dirão que as palavras leva-as o vento, mas estas estão aqui para sempre e sempre que as queiras ler.
O meu nome está também no teu e, como diz a canção, isso me envaidece.
Agora vou domir. Boa noite, dorme bem Joana.