terça-feira, 15 de março de 2011

Ternura de Verão 01.09.2010 Algarve


Ternura de Verão

Ouvimos Fado. Olho pela nesga de um olho acabado de acordar para a parede branca que me separa do sol abafador. Acordo porque é um homem que canta agora e não a voz feminina que me adormeceu.
Tropecei no meu sono em sonhos diferentes e desço por esse cansaço de ter acordado numa região diferente às seis e meia por entre alarmes laborais.

Trânsito não houve, apenas estradas, umas atrás das outras, quase que iguais por entre nomes de terras que parecem letras juntas sem nexo e acentos que nada acrescentam senão um sotaque. Nomes de terras que tenho dificuldade em pronunciar e que esqueço assim que me afasto cem metros. Cem metros de um céu que luta contra o calor que já dura há meses, um céu rebelde cinzento que logo vira azul. Azul de Verão Algarvio.
Cantava e quando a canção terminou a porta abriu-se e de lá saiu o sol, como que me acordando com ternura.

Durmo profundamente quando estou com ela, mas quando sou apenas eu e os meus sonhos, há uma revolta que quase causa uma amargura. De mim nunca me posso livrar. E, não quero. Mas os meus sonhos não me largam, vivo em antecipação sempre como que querendo adivinhar e viver o meu próximo dia. E, quando acordo meto travões a um dia que na minha cabeça já vivi, mas que ainda não aconteceu.

Cheira-me a sardinhas, cheira a Verão. São duas e dezassete e tudo deixou a praia para assar sardinhas com sal grosso das salinas da Ria Formosa.

Simples bem simples, como todas as coisas boas da vida. Sardinhas a 3 euros e meio por um quilo vendidos por uma senhora de chapéu Lacoste com um peixe encrostado chamando a atenção para o seu tamboril mais fresco que o da peixeira vizinha. Cheira-me a sardinha, batata cozinha com pele e salada de tomate com cebola, orégãos e muito, muito azeite. Falta o pão que chega agora quente da praça. Pão algarvio, salgado e amargo. Pão que sabe a mar com que comemos as sardinhas sem talheres. As espinhas não importam, até porque se ficar uma entalada basta comer um pedaço de pão e engolir, engolir até a espinha se perder e desfazer entre o miolo mastigado do pão mais saboroso que há.

Há comidas que sabem a memórias e têm a tendência de nos fazerem lembrar felicidades vividas. Não há só uma felicidade, há muitas. Essa refeição tão simples lembra-me os meus dois sítios preferidos, Lisboa e Algarve. Quando mastigo o tomate com orégãos estou no Algarve, independentemente de geograficamente estar lá ou não. Quando mordo com vigor a côdea teimosa desse pão amargo estou de férias, apesar de saborear essa côdea e miolo em Londres. Quando como sardinhas, o sangue Lisboeta acorda e corre mais forte pelas sete colinas das minhas veias, para cima e para baixo.

Sinto Lisboa em mim como um Fado mudo.

Agora brilham-me os olhos e não sei porquê. É tal o amor ao lugar que me viu nascer, numa Primavera não sei se solarenga ou chuvosa, num Abril de águas mil, que me estrelam os olhos. Enfim, Lisboa é assim.

Voltando às comidas hoje foi salada de tomate com cebola e orégãos, pimentos assados primeiros às escuras junto com as sardinhas no carvão, cujo cheiro teima em ficar nos cabelos, azeite e vinagre. Vinagre tem aquele sabor que quando provamos quando somos crianças não esquecemos mais e não sabemos se gostamos ou não, até porque é um sabor esquisito.

A minha mãe ainda hoje não gosta de temperar a salada, mas para mim tomate e alface sem tempero sabe a mar sem sal. O sal mais forte da água de Cabanas de Tavira. Quando mergulhei fui ingénua ao ponto de pensar que todos os mares tinham o mesmo sabor. Acho que já não me lembrava que num só mar há vários mares, vários gostos, tal como num amor há vários amores, mas todos são uma só prosa.

Mergulhei com a boca tão aberta que foi como engolir uma batata frita cheia de sal grosso, mas a expressão na minha cara, apesar de ter sido de surpresa, foi de alegria. Alegria tal que saí a correr do mar muito contente gritando às minhas amigas “o mar aqui é muito mais salgado, o mar aqui é muito mais salgado!!”. Umas ficaram surpreendidas e acompanharam-me na minha alegria e quiseram provar esse mar que eu descrevia com tamanha exaltação. Saltaram das toalhas de riscas coloridas tão típicas das famílias portuguesas e avançaram até ao mar, querendo também elas saborear esse sal que se agarrava à minha pele secando-a. Quando o sal se agarra ao nosso cabelo torna-o seco e crespo, grosso e impossível de pentear. Adoro.
Numa dessas noites desse Verão tão bonito estivemos as três debaixo das estrelas. Guiámos e encontrámos poesia, quando pensei ir encontrar apenas uma esplanada à noite perdida num Sul mais rural, de costas voltadas para o mar.
Encontrei poesia e escrevo. Fomos à procura de um lugar onde uma de nós já tinha estado e ela garantia-nos que adoraríamos esse lugar. Esse lugar jogou às escondidas connosco e quando já tínhamos desistido de o encontrar, parámos o carro. E aí... poesia escreveu-se em forma de um céu mais estrelado que qualquer planetário que tenhamos visitado em crianças com a escola.

O carro parou quase que por instinto e as portas abriram-se. Não sei que horas eram, mas já era o dia seguinte. Deitámo-nos na estrada perdida num Algarve campestre, estendidas paralelas ao mar e de olhos apontados ao céu.

Estendemo-nos paralelas ao mar prolongando-o campo adentro. De repente, era como se fosse dia outra vez e uma declaração de felicidade tivesse sido assinada pelas nossas seis mãos. Foi uma declaração de amor que o céu nos deu. As estrelas, cobertas de vaidade, não nos deixavam ver o azul marinho do céu, mas nós não nos importámos. (As estrelas eram mais verdadeiras que qualquer dúvida que tu tenhas minha querida. Esquece as dúvidas e abraça forte o que é real).
Ali ficámos e, posso dizer que nunca vou esquecer aqueles minutos que não contei, mas que tenho a certeza terem sido mais que muitos.
Daí entrámos no carro outra vez e, como que, por iluminação achámos o tal lugar que procurávamos. O cheiro, que mais tarde descobrimos ser duma planta chamada Dama da Noite, cobriu-nos e é realmente incrível pensar que durante aquele dia e noite nunca estive descoberta.

Ao longo do dia o sol abraçou-me e beijou-me tornando a minha pele mais morena ainda, tal como eu gosto, deixou-me a pele seca a precisar do mar. O mesmo mar que me molha, mas que passados dois minutos de o deixar me seca a pele, amargurado por o ter deixado e implorando que lá volte.

O mar no Verão é particularmente viciante, porque mal de lá saimos é tal o calor que sentimos que queremos mergulhar outra vez, como se de um sonho lindo se tratasse. A parelha entre o sol, que nos torra, e o mar que nos molha, torna o Verão numa ternura da qual nunca quero deixar de sentir falta.

(Nunca quero também deixar de sentir falta tua, da tua beleza. Não é fácil não pensar em ti, não quero.)
Há uma beleza no Sul que se prolonga não só pelas paisagens, calor ou comidas, mas porque as memórias doces são não só do passado, mas também perpetuadas por cada presente lá passado.

Podia falar das infâncias lá passadas, das adolescências, mas a verdade é que a cada ano que passa, que não podemos mais agrupar em idades chaves do crescimento, acrescento memórias boas que acontecem continuamente. Em cada é Verão é certinho ter algo para contar, mais uma beleza para descrever.
(A tua beleza, meu doce, é carnal e apetece tocar.) Apetece tocar, como me apetece agarrar o mar e levá-lo comigo no bolso. Por isso, gosto tanto do sal em mim, da pele a partir-se de tão seca que está. Só assim sinto o mar em mim quando dele estou longe.
(Quando estou longe de ti, sinto-te no cheiro que é só teu, mas que deixou rasto no meu olfacto.
Tu própria disseste ‘a minha cama cheira a ti, o meu quarto cheira a ti, aliás tudo cheira a ti’.)
A magia, a felicidade, o querer estar de férias ali nunca desaparece. É como uma amiga de confiança com quem podemos sempre contar. Uma amiga que nos liga sempre, que está ali de braços abertos desdobrada num rectângulo de País. País este desdobrado como um ‘quantos queres’, onde cada número é uma coisa boa, aquecido por um sol teimoso e coberto por um oceano de diferentes sorrisos, ora calmo, ora bravo.
As pessoas de quem me rodeio também ajudam e prolongar essa beleza. Ajudam a tornar esse episódio numa novela interminável. É maravilhoso saber que há um lugar assim. Essas pessoas sentem o mesmo do que eu. Esse rectângulo abre os braços a todos e não pede nada em volta. Também não precisa, porque vicia e Verão após Verão tudo lá volta.

A ansiedade pelos meses de Maio, Junho, Julho e, o tão festejado por quem vive cá fora, lindo Agosto é enorme. Setembro é uma surpresa agradável, cheio de calor, cheio de calma, cheio de harmonia.
Nesse Verão que passou cada dia foi vivido sem horas. Só sabia que era o dia seguinte, porque quando lia o jornal a data era diferente. Quando vou de férias só sei que dia é antes de viajar e o dia antes de voltar de férias. De resto o que é verdadeiro não são as horas do relógio, a data dita em voz alta pelo pívot de notícias na televisão, mas sim as maresias, o sol e a lua.
(Bem sei como gostas da lua meu amor).
O sol encanta-me.

Sou filha feita num mês de Verão, nascida num mês expectante de calor e mangas curtas, nascida de um dia para o outro num fim-de-semana claro.


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